por Roberta Arinelli
Em 2023, a Inteligência Artificial (IA) e a IA generativa se firmaram como protagonistas e receberam holofotes não apenas nos ambientes especializados em inovação e tecnologia, mas também nos debates da sociedade sobre seus impactos em todos os setores.
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A história da IA na medicina remonta a décadas atrás, com investimentos em pesquisa e desenvolvimento de sistemas computacionais para auxiliar profissionais de saúde. O primeiro dispositivo médico habilitado para IA recebeu a aprovação da
Food and Drug Administration (FDA) em 1995 para interpretação de lâminas cervicais.
4,5 O crescimento exponencial ocorreu e foram fornecidas 692 aprovações da FDA para dispositivos alimentados por IA até julho de 2022.
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Na oncologia, a IA tem desempenhado um papel revolucionário, redefinindo a forma como os médicos diagnosticam, tratam e acompanham pacientes com câncer. Com avanços significativos em algoritmos de
machine learning e acesso a grandes conjuntos de dados clínicos, a IA capacita profissionais de saúde a personalizar ainda mais a abordagem ao câncer, tornando-a mais eficaz e precisa. Ela não apenas auxilia na detecção precoce e na identificação das origens de tumores, mas também orienta estratégias de tratamento individualizadas, representando uma importante ferramenta na luta contra uma das doenças mais desafiadoras da medicina moderna.
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Oráculos que preveem o futuro
O volume de informações científicas existente hoje ultrapassou a capacidade do que um cérebro humano poderia processar. A IA desempenhou um papel fundamental na análise de grandes conjuntos de dados clínicos e genômicos, ajudando a identificar padrões e correlações que podem orientar o desenvolvimento de tratamentos personalizados para pacientes com câncer e outras doenças complexas.
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De acordo com o sociólogo Glauco Arbix, coordenador de impacto do Centro de Inteligência Artificial da Universidade de São Paulo (USP), apenas uma ferramenta inteligente pode gerar e analisar uma quantidade massiva de dados com agilidade e menor propensão a erros.
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“Encontrar padrões nesse mar de informações é uma empreitada desafiadora e que muitas vezes beira o inverossímil. A tecnologia pode processar rapidamente as informações, identificando mutações, variações genéticas e padrões que seriam difíceis de detectar manualmente”, avalia Glauco.
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O papel de diagnosticar e traçar a conduta do paciente, que era elaborado intrinsicamente na cabeça do médico, passa a ser agora executado parcialmente por instrumentos computacionais.
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Um dos exemplos é a utilização de estudos genômicos em biópsias sequenciais, que podem revelar a evolução genética de tumores. A estratégia é capaz de orientar a linha terapêutica e de prever a resistência ao tratamento. Enquanto estudos mostram que a biópsia líquida pode ser mais eficaz para analisar a efetividade do tratamento para o câncer de pulmão através da detecção do biomarcador PD-L
1,8 pesquisadores do
Massachusetts Institute of Technology (MIT) desenvolveram um modelo de
deep-learning que adota uma abordagem personalizada para avaliar o risco de câncer de pulmão com base em tomografias computadorizadas
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A tomografia computadorizada de baixa dose (TCBD) é atualmente a forma mais comum de rastreamento do câncer de pulmão. Sybil, nome originado nos oráculos da Grécia Antiga em quem se confiava para transmitir o conhecimento divino do passado, presente e futuro, foi concedido a uma ferramenta de IA que leva a triagem um passo adiante, analisando os dados da TCBD sem a assistência de um radiologista para prever o risco de um paciente desenvolver câncer de pulmão dentro de seis anos.
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Sybil foi validada em três conjuntos de dados independentes: 6.282 TCBD de participantes do
National Lung Screening Trial (NLST), 8.821 do
Massachusetts General Hospital (MGH) e 12.280 do
Chang Gung Memorial Hospital (CGMH), com diferentes históricos de tabagismo, incluindo não fumantes. Sybil alcançou áreas sob as curvas ROC para previsão de câncer de pulmão em 1 ano de 0,92 (intervalo de confiança [IC] 95%: 0,88 a 0,95) no NLST, 0,86 (IC 95%: 0,82 a 0,90) no MGH e 0,94 (IC 95%: 0,91 a 1,00) no CGMH. Os índices de concordância ao longo de 6 anos foram 0,75 (IC 95%: 0,72 a 0,78), 0,81 (IC 95%: 0,77 a 0,85) e 0,80 (IC 95%: 0,75 a 0,86) no NLST, MGH e CGMH, respectivamente.
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Otimização da utilização de recursos
No Brasil, um exemplo de como a análise genômica pode beneficiar diretamente a população é o projeto da startup Huna.ai, acelerada pelo Hospital do Amor. Algoritmos de IA são capazes de identificar sinais precoces de câncer de mama, analisando painéis sanguíneos das pacientes.
11 Ainda no campo do rastreamento do câncer de mama, embora as mamografias sejam atualmente o padrão-ouro, existe uma controvérsia em torno da frequência com que elas devem ser realizadas, pois programas de rastreio devem equilibrar o benefício da detecção precoce com o custo do rastreio excessivo.
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Isso levou pesquisadores do MIT a testarem o uso de
machine learning para fornecer triagem personalizada. Assim surgiu o Tempo, uma tecnologia que utiliza o aprendizado por reforço, método conhecido pelo sucesso em jogos como xadrez, para criar diretrizes de triagem baseadas em risco. A partir de um modelo de risco baseado em IA que analisa quem foi triado e quando foi diagnosticado, o Tempo recomendará que um paciente retorne para uma nova mamografia em um momento específico no futuro, como seis meses ou três anos.
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O modelo foi treinado em um grande conjunto de dados de mamografias e testado em pacientes do MGH e conjuntos de dados externos. O Tempo obteve uma detecção precoce melhor do que a triagem anual, ao mesmo tempo em que exigiu 25% menos mamografias em um dos centros. Dada a escala massiva da triagem de câncer de mama, com dezenas de milhões de mulheres que são submetidas a mamografias todos os anos, melhorias nas diretrizes são de imensa importância.
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Câncer de sítio primário desconhecido: um desafio perfeito para o machine learning
Mas se a medicina de precisão é capaz de promover predição, rastreamento e tratamento a partir da identificação do tipo de tumor, como lidar com situações em que sua origem é desconhecida?
O câncer de sítio primário desconhecido representa 3% a 5% de todos os casos de câncer. Pode ser verificado histologicamente e clinicamente, mas apenas suas metástases são encontradas no momento do diagnóstico – o tumor primário não é detectável.
13, 14 A falta de conhecimento sobre a origem impede a prescrição de medicamentos de precisão aprovados para tipos específicos de câncer. São então instituídos tratamentos agressivos com terapias não direcionadas, que podem evoluir com alta toxicidade e baixas taxas de sobrevida.
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Uma abordagem de
deep-learning desenvolvida por pesquisadores do
Koch Institute for Integrative Cancer Research do MIT e MGH pode ajudar a classificar cânceres de origem desconhecida, observando mais de perto os programas de expressão gênica relacionados ao desenvolvimento e diferenciação celular inicial.
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O modelo se concentrou em sinais de vias de desenvolvimento alteradas nas células cancerígenas. Conforme o tumor se desenvolve, elas perdem muitas das características de uma célula madura e começam a se assemelhar às células embrionárias, com capacidade de proliferar, se transformar e metastatizar em novos tecidos. Os pesquisadores compararam então dois grandes atlas celulares, identificando correlações entre células tumorais e embrionárias: o Atlas Genômico do Câncer (TCGA), que contém dados de expressão gênica para 33 tipos de tumores, e o Atlas Celular da Organogênese de Camundongo (MOCA), que traça o perfil de 56 trajetórias de células embrionárias à medida que se desenvolvem e se diferenciam.
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O mapa resultante de correlações entre padrões de expressão gênica do desenvolvimento em células tumorais e embrionárias foi então transformado em um modelo de
machine learning. Os pesquisadores dividiram a expressão gênica de amostras de tumores do TCGA em componentes individuais que correspondem a um ponto específico no tempo da trajetória de desenvolvimento e atribuíram a cada um desses componentes um valor matemático. Em seguida, construíram um modelo de aprendizado de máquina, o
Developmental Multilayer Perceptron (D-MLP), que avalia um tumor com base em seus componentes de desenvolvimento e, em seguida, prevê sua origem.
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Após o treinamento, D-MLP foi aplicado a 52 novas amostras de cânceres de sítio primário desconhecido.16 O modelo classificou os tumores em quatro categorias e produziu previsões e outras informações para orientar o diagnóstico e o tratamento dos pacientes. A ferramenta de IA foi capaz de identificar tipos de câncer com alto grau de sensibilidade e precisão.
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Em outro grupo de pesquisa do MIT e do
Dana-Farber Cancer Institute, um modelo computacional que utiliza
machine learning foi criado para analisar a sequência de cerca de 400 genes que frequentemente sofrem mutações no câncer e usar essa informação para prever a origem do tumor. O modelo, chamado
Oncology NGS-based primary cancer-type classifier (OncoNPC), foi treinado com dados de sequenciamento de próxima geração (NGS) de 36.445 tumores em 22 tipos de câncer em três instituições.
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Quando aplicado a 971 tumores de sítio primário desconhecido, o OncoNPC previu tipos de cânceres primários com alta confiança em 41,2% dos casos. Pacientes que receberam tratamentos paliativos iniciais concordantes com seus cânceres previstos pelo OncoNPC tiveram resultados significativamente melhores (
hazard ratio: 0,348; IC 95%: 0,210 a 0,570; p = 2,32x10−5). Além disso, o OncoNPC possibilitou um aumento de 2,2 vezes no número de pacientes com câncer de sítio primário desconhecido que poderiam ter recebido terapias guiadas genomicamente.
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Segundo os pesquisadores, trata-se de uma descoberta facilmente aplicável clinicamente, porque não exige a aprovação de um novo medicamento — essa população passa a ser elegível para tratamentos de precisão que já existem. Em trabalhos futuros, planejam aumentar o poder preditivo das análises incorporando informações obtidas em radiologia, patologia e outros tipos de imagens.
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À espera do futuro
O Ministério da Saúde anunciou em agosto de 2023 que investirá R$ 100 milhões em pesquisas sobre Saúde de Precisão, uma abordagem de análise genômica que combina perfil genético com o histórico de saúde e comportamental. Trata-se de um investimento em prol do avanço científico com o objetivo de se aproximar de países que já investem na área há décadas.
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“É uma oportunidade que a análise genômica traz dentro do campo das doenças crônicas, como o câncer. É utilizar a informação como resultado de uma hipótese que fará a diferença para o paciente, além de preparar o mercado brasileiro para que a informação da análise genômica se conecte a inovações e produtos que fazem sentido para as nossas necessidades de saúde”, explica Roger Chammas, professor da Faculdade de Medicina da USP.
É normal que a velocidade das mudanças traga receios. Há os que pensam que a IA resolverá todos os problemas no setor e revolucionará os cuidados de saúde. E há os que ressaltarão seus impactos negativos. A verdade provavelmente está em algum lugar no meio do caminho e a ampliação do uso das novas tecnologias ainda precisa superar barreiras econômicas, éticas, técnicas, regulatórias, políticas e sociais.
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Mas a história mostra de forma contundente que somente setores e organizações que se mantêm em constante inovação e adaptação sobrevivem. A IA não substituirá os médicos, mas aqueles que souberem usá-la substituirão profissionais que não incorporarem IA na sua prática.
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Referências
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